Traducción Filosófica ES-PT
O Reacionário Autêntico
10 FEVEREIRO, 2017 ~RENAN FELIPE DOS SANTOS
Nicolás Gómez Dávila in Revista de la Universidad de Antioquia, Nº. 240
(Abril–Junho de 1995), p. 16-19. Tradução do espanhol para o português do Brasil
por Renan Felipe dos Santos.
A existência do reacionário autêntico escandaliza o progressista. Sua presença
vagamente o incomoda. Ante a atitude reacionária, o progressista sente um leve
menosprezo, acompanhado de surpresa e desassossego. Para aplacar seus receios, o
progressista costuma interpretar esta atitude intempestiva e chocante como
dissimulação de interesses ou sintoma de estultícia; mas só o jornalista, o político e o
tolo não se embaraçam, secretamente, ante a tenacidade com que as mais altas
inteligências do Ocidente, já há cento e cinquenta anos, acumulam objeções contra o
mundo moderno. Um desdém complacente não parece, de fato, a contestação
adequada a uma atitude onde se irmana um Goethe a um Dostoievski. Mas se todas as
teses do reacionário surpreendem o progressista, a mera postura reacionária o
desconcerta.
Que o reacionário proteste contra a sociedade progressista, a julgue e a condene, mas
que se resigne, entretanto, ao seu atual monopólio da história, parece-lhe uma posição
extravagante. O progressista radical, por uma parte, não compreende como o
reacionário condena um fato que admite, e o progressista liberal, por outra, não
entende como admite um fato que condena. O primeiro lhe exige que renuncie a
condenar se reconhece que o fato é necessário, e o segundo que não se limite a
abster-se se confessa que o fato é reprovável. Aquele o incita a render-se, este a agir.
Ambos censuram sua passiva lealdade à derrota. O progressista radical e o
progressista liberal, de fato, repreendem o reacionário de maneira distinta, porque um
sustenta que a necessidade é razão enquanto o outro afirma que a razão é liberdade.
Uma visão distinta da história condiciona suas críticas. Para o progressista radical,
necessidade e razão são sinônimos: a razão é a substância da necessidade, e a
necessidade é o processo em que a razão se realiza. Ambas são uma só torrente de
existências.
A história do progressista radical não é a soma do meramente acontecido, mas uma
epifania da razão. Mesmo quando prega que o conflito é o mecanismo vetor da
história, toda superação resulta de um ato necessário, e a série descontínua dos atos é
a senda que traçam, ao avançar sobre a carne vencida, os passos da razão indeclinável.
O progressista radical só adere à idéia que a história cauciona, porque o perfil da
necessidade revela os traços da razão nascente. Do próprio curso da história emerge a
norma ideal que o nimba. Convencido da racionalidade da história, o progressista
radical incumbe a si mesmo o dever de colaborar com o seu sucesso. A raiz da
obrigação ética jaz, para ele, na nossa possibilidade de impulsionar a história aos seus
próprios fins. O progressista radical se inclina sobre o fato iminente para favorecer sua
vinda, porque ao atuar no sentido da história a razão individual coincide com a razão
do mundo. Para o progressista radical, pois, condenar a história não é só uma empresa
vã, mas também uma empresa estúpida. Empresa vã porque a história é necessidade;
empresa estúpida porque a história é razão.
O progressista liberal, por outro lado, instala-se na pura contingência. A liberdade,
para ele, é substância da razão, e a história é o processo em que o homem realiza sua
liberdade. A história do progressista liberal não é um processo necessário, mas a
ascensão da liberdade humana à plena posse de si mesma. O homem forja sua história
impondo à natureza a decisão de sua livre vontade. Se o ódio e a cobiça arrastam o
homem entre labirintos sangrentos, a luta se realiza entre liberdades pervertidas e
liberdades retas. A necessidade é, meramente, o peso opaco de nossa própria inércia, e
o progressista liberal estima que a boa vontade pode resgatar o homem, em qualquer
instante, das servidões que o oprimem.
O progressista liberal exige que a história se comporte de acordo com o que sua razão
postula, posto que a liberdade a cria; e como sua liberdade também engendra as
causas que defende, nenhum fato pode primar contra o direito que a liberdade
estabelece. O ato revolucionário condensa a obrigação ética do progressista liberal,
porque romper o que a estorva é o ato essencial da liberdade que se realiza. A história
é uma matéria inerte moldada por uma vontade soberana. Para o progressista liberal,
portanto, resignar-se à história é uma atitude imoral e estúpida. Estúpida porque a
história é liberdade; imoral porque a liberdade é nossa essência.
O reacionário, no entanto, é o estulto que assume a vaidade de condenar a história, e a
imoralidade de resignar a ela. Progressismo radical e progressismo liberal elaboram
visões parciais. A história não é necessidade, nem liberdade, senão sua integração
flexível. A história, de fato, não é um monstro divino. A cortina de poeira humana não
parece levantar-se como sob o hálito de uma besta sagrada; as épocas não parecem
ordenar-se como estágios na embriogenia de um animal metafísico; os fatos não se
imbricam uns aos outros como escamas de um peixe celeste. Mas se a história não é
um sistema abstrato que germina sob leis implacáveis, tampouco é o dócil alimento da
loucura humana. A gana e vontade gratuita do homem não são seu reitor supremo. Os
fatos não se moldam, como uma pasta viscosa e plástica, entre dedos afanados.
De fato, a história não resulta de uma necessidade impessoal, nem de um capricho
humano, mas de uma dialética da vontade onde a opção livre se desenvolve em
conseqüências necessárias. A história não se desenvolve como um processo dialético
único e autônomo, que prolonga em dialética vital a dialética da natureza inanimada,
senão em um pluralismo de processos dialéticos, numerosos como os atos livres e
atados à diversidade de seus solos carnais. Se a liberdade é o ato criador da história, se
cada ato livre engendra uma história nova, o livre ato criador se projeta sobre o mundo
em um processo irrevogável. A liberdade secreta a história como uma aranha
metafísica a geometria de sua teia. A liberdade, de fato, aliena-se no próprio gesto em
que se assume, porque o ato livre possui uma estrutura coerente, uma organização
interna, uma proliferação normal de consequências. O ato se desdobra, dilata e
expande de acordo com seu caráter íntimo e com sua natureza inteligível. Cada ato
submete uma parte do mundo a uma configuração específica.
A história, portanto, é uma liga de liberdades endurecidas em processos dialéticos.
Quanto mais fundo seja o estrato de onde brota o ato livre, mais variadas são as zonas
de atividade que o processo determina, e maior sua duração. O ato superficial e
periférico se esgota em episódios biográficos, enquanto o ato central e profundo pode
criar uma época para uma sociedade inteira. A história se articula, assim, em instantes
e em épocas: em atos livres e em processos dialéticos. Os instantes são sua alma
fugitiva, as épocas seu corpo tangível. As épocas se estendem como trechos entre dois
instantes: seu instante germinal, e o instante onde clausura o ato incoativo de uma
nova vida. Sobre dobradiças de liberdade giram portas de bronze. As épocas têm uma
duração irrevogável: o encontro com processos surgidos desde uma maior
profundidade pode interrompê-las, a inércia da vontade pode prolongá-las. A
conversão é possível, a passividade familiar. A história é uma necessidade que a
liberdade engendra e a casualidade destroça.
As épocas coletivas são o resultado de uma comunhão ativa em uma decisão idêntica,
ou da contaminação passiva de vontades inertes; mas enquanto dura o processo
dialético para o qual as liberdades se inclinaram, a liberdade do inconforme se retorce
em uma ineficaz rebeldia. A liberdade social não é opção permanente, mas brandura
repentina na conjuntura das coisas. O exercício da liberdade supõe uma inteligência
sensível à história, porque diante da liberdade alienada de uma sociedade inteira o
homem só pode ouvir o ruído da necessidade que se quebra. Todo propósito se frustra
se não se insere nas fendas cardeais de uma vida.
Frente à história a obrigação ética de atuar surge somente quando a consciência
aprova a finalidade que momentaneamente impera, ou quando as circunstâncias
culminam em uma conjuntura propícia à nossa liberdade. O homem que o destino
coloca em uma época sem fim previsível, e cujo caráter fere os mais profundos nervos
de seu ser, não pode sacrificar, atropeladamente, sua repugnância a seus brios, nem
sua inteligência à sua vaidade. O gesto espetacular e vão merece o aplauso público, e
o desdém daqueles a quem a meditação reclama. Nas paragens sombrias da história, o
homem deve se resignar a minar com paciência as soberbas humanas. O homem pode,
assim, condenar a necessidade sem se contradizer, mesmo que não possa agir senão
quando a necessidade se derruba. Se o reacionário admite a atual esterilidade dos seus
princípios e a inutilidade das suas censuras, não é porque lhe baste o espetáculo das
confusões humanas. O reacionário não se abstém de agir porque o risco o espanta,
mas porque estima que atualmente as forças sociais se inclinam rapidamente para uma
meta que desdenha. Dentro do atual processo, as forças sociais cavaram seu curso na
rocha, e nada mudará seu rumo enquanto não deságüem no raso de uma planície
incerta. A gesticulação dos náufragos só faz fluir seus corpos paralelamente à outra
margem. Mas se o reacionário é impotente em nosso tempo, sua condição o obriga a
testemunhar seu asco. A liberdade, para o reacionário, é submissão a um mandato.
De fato, ainda que não seja nem necessidade, nem capricho, a história, para o
reacionário, não é, entretanto, dialética da vontade imanente, mas uma aventura
temporal entre o homem e o que lhe transcende. Suas obras são traços, sobre a areia
revolvida, do corpo do homem e do corpo do anjo. A história do reacionário é um
farrapo, rasgado pela liberdade do homem, que tremula ao sopro do destino. O
reacionário não pode se calar porque sua liberdade não é meramente o asilo onde o
homem escapa ao tráfego que o aturde, e onde se refugia para assumir a si mesmo. No
ato livre o reacionário não toma, tão somente, posse de sua essência. A liberdade não
é uma possibilidade abstrata de escolher entre bens conhecidos, mas a concreta
condição dentro da qual nos é outorgada a posse de novos bens. A liberdade não é
instância que decide pleitos entre instintos, senão a montanha desde a qual o homem
contempla a ascensão de novas estrelas, entre o pó luminoso do céu estrelado. A
liberdade coloca o homem entre proibições que não são físicas e imperativos que não
são vitais. O instante livre dissipa a vã claridade do dia, para que se erga, sobre o
horizonte da alma, o imóvel universo que desliza suas luzes transeuntes sobre o
tremor da nossa carne. Se o progressista se inclina ao futuro, e o conservador ao
passado, o reacionário não mede seus desejos com a história de ontem ou com a
história de amanhã. O reacionário não clama o que há de trazer a próxima alvorada,
nem se aferra às últimas sombras da noite. Sua morada se levanta neste espaço
luminoso onde as essências o interpelam com suas presenças imortais. O reacionário
escapa à servidão da história, porque persegue na selva humana a pegada de
passos divinos. Os homens e os fatos são, para o reacionário, uma carne servil e
mortal que alentam sopros tramontanos. Ser reacionário é defender causas que não
giram sobre o tabuleiro da história, causas que não importa perder. Ser reacionário é
saber que apenas descobrimos aquilo que cremos inventar; é admitir que nossa
imaginação não cria, senão desnuda corpos brandos. Ser reacionário não é abraçar
determinadas causas, nem advogar por determinados fins, mas submeter nossa
vontade à necessidade que não constrange, render nossa liberdade à exigência que não
compele; é encontrar as evidências que nos guiam adormecidos à margem de lagoas
milenares. O reacionário não é o sonhador nostálgico de passados abolidos, é o
caçador de sombras sagradas sobre as colinas eternas.